Em 2006, o médico Shinya Yamanaka e o biólogo John Gurdon fizeram uma descoberta importantíssima para a medicina regenerativa: eles descobriram as células-tronco pluripotentes induzidas, também chamadas de iPSCs.

Essa descoberta deu a esperança de que um dia seria possível reconstruir tecidos ou órgãos de pacientes e ainda auxiliar no desenvolvimento de fármacos para as mais diferentes moléstias humanas.

Isso porque as iPSCs têm alta capacidade de autorrenovação e diferenciação, ou seja, são capazes de se transformar em muitos tipos diferentes de células. Comparadas às células-tronco, elas possuem a vantagem, do ponto de vista terapêutico, de serem empregadas na própria pessoa que as forneceu.

Essa possibilidade elimina o problema de imuno-compatibilidade do órgão do doador e do transplantado, coisa que as células-tronco embrionárias não são capazes, pois o doador, nesse caso, é um embrião. E, o fato das células tronco embrionárias serem obtidas de um embrião em desenvolvimento, culminando com sua morte, também esbarra num problema ético.

Sem dúvida, os iPSCs revolucionaram a medicina regenerativa, conseguindo inclusive um prêmio Nobel. Por causa de sua capacidade de se desenvolver virtualmente em qualquer tipo de célula no corpo, essas células são consideradas uma fonte abundante – e com menos desafios éticos – de células saudáveis ​​para transplante.

Porém, as iPSCs podem levar meses para serem produzidas e o processo é caro. Além disso, reverter as células de volta ao estado de células-tronco acaba com seu histórico, muitas vezes útil para o estudo da progressão da doença.

Em essência, as iPSCs são as intermediárias entre uma célula e outro tipo de célula. Mas, e se pudéssemos simplesmente eliminar o intermediário?

Entra em cena a irmã mais nova das iPSCs: a transdiferenciação.

Em vez de reverter as células de volta a um estágio maduro, a transdiferenciação força uma célula madura a se converter para outra. Essa conversão acontece naturalmente em alguns animais: por exemplo, o nemátode C. elegans tem células no reto que às vezes se transformam em células cerebrais.

Assim, a transdiferenciação oferece um novo caminho para a regeneração. Imagine persuadir células sanguíneas a se convertem em neurônios para “repovoar” o cérebro de uma pessoa que sofreu um derrame. Ou usar células da pele transformadas para atuar em um cérebro que está em degeneração. Como as células vêm do próprio corpo do paciente, a imunorreação – um desafio para as células-tronco – jamais aconteceria.

A transdiferenciação geralmente envolve encontrar gatilhos que apagam a identidade de uma célula e lhe dá outra. Frequentemente, são “fatores de transcrição”, uma família de proteínas que se agarra ao DNA e altera a forma como se traduz em proteínas.

Lembrando: todas as células têm (quase) o mesmo DNA. O que faz com que elas se tornem um neurônio ou uma célula da pele irá depender de quais fragmentos de DNA foram expressos. Fatores de transcrição são fundamentais para este processo. A questão é encontrar o coquetel correto de fatores, para se chegar a “uma receita” para criar novas células.

Uma nova esperança

A transdiferenciação não se limita apenas a produzir células cerebrais. Mas, por causa da capacidade limitada do cérebro de se auto-regenerar, essa tecnologia é a que mais promete na esfera da neurociência.

Em 2010, cientistas da Universidade de Stanford descobriram que podiam transformar as células da ponta da cauda de um rato em neurônios. O cerne da alquimia celular se baseou em três fatores de transcrição entregues ao rato, pegando carona em um vírus seguro. O processo levou menos de duas semanas.

Um ano depois, a mesma equipe descobriu que a adição de um quarto gene transformava células fibroblásticas humanas – que constituem o tecido conjuntivo encontrado em toda a pele – em neurônios funcionais. Em poucas semanas, as células começaram a gerar sinais elétricos e formar conexões com outros neurônios.

Na mesmo ano, outro estudo descobriu que sequestrando três fatores de transcrição eles poderiam converter fibroblastos em células de dopamina, que é um neurotransmissor que ajuda na transmissão de mensagens entre as células nervosas. Ou seja, a presença dessa substância no cérebro auxilia na realização dos movimentos voluntários do corpo de forma automática, não precisamos pensar em cada movimento que nossos músculos realizam.

No entanto, a medida que envelhecemos – até mesmo pessoas saudáveis – há uma morte progressiva das células nervosas que produzem a dopamina. Pessoas que sofrem o Mal de Parkinson, perdem essas células (e consequentemente diminuem muito seus níveis de dopamina) num ritmo muito acelerado e assim acabam por manifestar os sintomas da doença. Por isso, a dopamina é um dos principais focos na terapia com células-tronco na Neurociência.

Todas essas descobertas animaram os neurocientistas: em comparação com as iPSCs, a transdiferenciação foi muito mais rápida na produção de neurônios funcionais. Além disso, como elas não passam pelo estágio de células-tronco – caracterizado pela rápida divisão celular –, é menos provável que essas células formem tumores quando implantadas no tecido.

“Há esperança, embora não haja ainda evidências convincentes, de que os neurônios gerados dessa forma possam ser superiores aos gerados pelas iPSCs, evitando-se assim os problemas de usar essas células”, disse na época o Dr. Michael Sendtner na Universidade de Würzburg.

Validando esse comentário acima de Sendtner, um estudo em 2017 mostrou que a transdiferenciação poderia converter diretamente astrócitos – também chamadas de células gliais – em neurônios em camundongos com Parkinson. Após o tratamento, os ratos melhoraram suas funções motoras, como equilíbrio e marcha.

Se houver uma maior otimização, os autores disseram, esta abordagem poderá ser mais fácil para terapias clínicas, porque só precisamos entregar genes, em vez de milhões de células frágeis, no cérebro.

Uma solução para o envelhecimento?

Para o Dr. Rusty Gage, do Instituto Salk, na Califórnia, a transdiferenciação não se limita às terapias de substituição celular. Em vez disso, oferece uma visão sem precedentes de como os neurônios envelhecem à medida que envelhecemos.

Pioneiro na pesquisa das células-tronco do cérebro, Gage publicou um estudo surpreendente em 2015. Pegando células fibroblásticas de doadores humanos – tanto jovens como idosos – ele e sua equipe descobriram que a transdiferenciação direta poderia transformar essas células em neurônios “jovens” e “velhos” em termos de expressão de genes, em oposição às iPSCs, as quais resetam o relógio retornando as células para um estágio jovem.

Por que isso é uma coisa boa?

Há muito tempo, os neurocientistas buscam entender o que acontece no cérebro à medida que envelhecemos. Ter acesso a amostras relevantes de tecidos sempre foi algo difícil. Com a transdiferenciação, agora é possível examinar o processo de envelhecimento usando “neurônios induzidos”. Ao comparar as mudanças que ocorrem nos neurônios à medida que a pessoa envelhece, os cientistas poderão descobrir fatores que levam ao envelhecimento – e potencialmente formas para reverter isso.

Desde a descoberta de seu protocolo de conversação, os neurônios induzidos ao envelhecimento esclareceram como a mitocôndria – a casa de força da célula – altera sua produção de energia durante o processo de envelhecimento, tornando o cérebro tão vulnerável a esse processo.

Produção em massa

Há outra vantagem dos neurônios transdiferenciados: eles podem ser produzidos em massa.

Tradicionalmente, a reprogramação celular usa as células da pele de um fibroblasto do paciente como células doadoras. Mas, fazer a biópsia da pele é um processo invasivo e doloroso. Acrescente a isso tempo e dinheiro para gerar os iPSCs, o que torna o processo difícil de escalar.

“A perspectiva de gerar iPSCs de centenas de pacientes é assustadora e exigiria uma automação do complexo processo de reprogramação”, disse o Dr. Marius Wernig, professor de patologia da Universidade de Stanford, que publicou a primeira receita de neurônios transdiferenciados em 2011.

Agora Wernig traz uma nova receita de neurônios. Desta vez, o ingrediente principal é o sangue:

Uma das amostras biológicas mais fáceis de se conseguir. Quase todos os pacientes que vão ao hospital deixam uma amostra de sangue, que muitas vezes é congelada e armazenada para ser utilizada em estudos futuros.” – Dr. Marius Wernig.

 Dr. Marius Wernig, da Universidade de Stanford (Cortesia da imagem: NYSCF)

 

A nova abordagem de Wernig faz uso das células do sistema imunológico que circulam no sangue. Com apenas quatro fatores de transcrição – chamados de BAMN – as células imunológicas perdem sua identidade normal e se transformam em neurônios em aproximadamente três dias.

“É chocante ver como é simples converter células T em neurônios funcionais em apenas alguns dias”, disse Wernig. “As células T são células imunológicas muito especializadas, com uma forma arredondada simples. O fato de a transformação em neurônios ser tão rápida é surpreendente.” O estudo foi publicado em 4 de junho no Proceedings of National Academy of Sciences.

Embora os neurônios transformados pelos cientistas tenham formado conexões sinápticas com os biológicos, eles não puderam ainda formar sinapses maduras – espaços entre os neurônios que são necessários para as células se comunicarem umas com as outras. A equipe espera poder melhorar a técnica.

A conversão foi altamente eficiente, gerando até 50.000 neurônios a partir de 1 milímetro de sangue. Essa é uma ótima notícia, pois no futuro essa técnica pode ser utilizada para estudar os neurônios de um paciente com autismo ou esquizofrenia. Em teoria, eles agora podem estudar centenas de pacientes com esquizofrenia ou autismo, de modo a entender as influências genéticas e identificar possíveis tratamentos.

“Durante décadas, tivemos poucas pistas sobre as origens desses distúrbios ou sobre como tratá-los. Agora podemos começar a responder várias perguntas”, disse Wernig.

Transdiferenciação vs. iPSCs

À medida que os cientistas se apressam em desvendar novos códigos de reprogramação celular, a transdiferenciação rapidamente ganha força. Já em 2011 alguns cientistas comentaram que “são tantos os desenvolvimentos na transdiferenciação celular que pode-se esperar que as células-tronco sejam dispensáveis na busca pela medicina regenerativa”.

Mas, até mesmo Wernig hesita em dispensar totalmente as células-tronco:

Eu diria que ambas as abordagens devem ser ativamente levadas adiante porque você nunca sabe para quais casos e aplicações específicas uma ou outra pode ser a mais adequada.”

Fontes: SingularityHub, Nossa Ciência e Medical XPress

Crédito da imagem da capa: Marius Wernig, CC BY-ND

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